sábado, 31 de maio de 2008

O sorveteiro - Parte XIX

(...)

“Que comece a vida, pois!” - foi a frase que o sorveteiro ouviu do pai há trinta anos, ao perceber o filho interessado nos decotes femininos, ainda comportados em comparação aos de do Carmo e das primas. Levou-o, é claro, para falar com Margot, a ruiva gorda que todo mês tinha carne nova em sua casa para rapazotes como Silva.

O filho estranhou a intimidade do pai com a cafetina. Ficou de coração apertado ao pensar que a mãe era enganada em relação às horas-extras feitas no trabalho. Isso explicava o fato de que apenas o serviço fosse extra, nunca o salário. “Melhor trabalhar mais e ganhar pouco do que não trabalhar, Nadir! Reclamar que eu não vou.” E a mãe se calava. Não estavam em condições de pedir nada: a fila dos que se contentariam com menos era ameaçadora demais para encorajar alguma exigência.

Se o pai de todos os outros meninos faziam o mesmo, porque não o seu? Porque era seu pai, oras! Seu Jaime da Silva ensinara a ele todos os princípios que trazia consigo, inclusive o dom de perceber as pessoas mais profundamente do que elas mesmas em relação a si. Era respeitoso com todos e tudo, mesmo em tempos de se perder a cabeça, tal como estava a época em que o sorveteiro era rapazote. Talvez por isso a válvula de escape na casa da luz roxa –Margot não gostava de vermelho, lembrava-se do sangue que pintou parte de seu passado.

Mas e a curiosidade? Ah! Essa não podia ser negada. Disputava com os meninos da rua as frestas da janela daquele que era o primeiro prostíbulo da cidade. Escola para quê? Não entendia porque a professora de português se matava explicando aos meninos da quarta série - cursada duas vezes por Silva, quando desistiu de encará-la pela terceira – as belezas femininas adoradas pelos poetas, se elas estavam logo ali, longe do tato, mas ao sabor da vista.

“Não quero, pai...” No fundo, era o que mais queria na vida. Mas uma mão o segurava por dentro. Se as tocasse, deixaria de idolatrá-las, deixariam de ser santidades. Essa sensação o perseguia desde sempre. Amava sempre de longe, até que a obsessão o tomava e não conseguia guardar para si só tudo o que sentia. Quando revelava o sentimento incontrolável - e caso fosse retribuído - deixava logo de desejar: o objeto perdia a aura.

E isso foi assim até o dia em que Maria Bela mostrou para ele que o desejo, contido em si ou escancarado e retribuído, era motivo de estagnação. A primeira lição que tivera na vida foi durante a infância, quando o pai lhe dera as bases do viver com honra. A segunda foi a prova de fogo do dia em que Maria fugira. Dali para frente estava o ato decisivo: saltar o abismo ou cair nele. Para não escorregar, estufou o peito e repetiu a frase do falecido pai, agora com o sentido vindo de homem de mais de quarenta anos:

- Que comece a vida, pois!

(...)

Hedonismo


O prazer é da cor rosa pastel com reflexos dourados.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Ah! A transparência...

Crime delicado, 2005. Direção de Beto Brant, inspirado na obra de Sérgio Sant'anna.

No bar. Conversa entre o crítico de teatro renomado e a atriz que o convidou para jantar.

"
- Tá sozinho?
- Porquê?
- Você tem cara de homem solitário.
- Ah, é mesmo?
- Uhum. Daqueles que precisam de cuidado.
- Que bom. Você entende muito sobre os homens, não é?
- O suficiente.
- Pra quê?
- Pra cuidar deles.
- Que bom.
...
- Você já foi casado?
- Tive algumas amigas.
- Que duraram muito tempo?
- Mas o que que é isso, um interrogatório pra uma revista de intimidades? O jornalista aqui sou eu!
- Desculpa. Só tava perguntando.
- Pra quê?
- Ué? Não sei. Não é pra isso que a gente sai com as pessoas?
- Não sei, eu saí porque você tinha alguma coisa pra me dizer. Talvez você tenha, e eu acho que sei o que você tem pra me dizer. Você deve estar querendo armar uma certa intimidade pra poder perguntar o que eu acho da sua peça e com isso comprometer um pouco minha opinião; se não sobre o espetáculo, pelo menos sobre seu trabalho. Eu sei que deve ser muito difícil pra você, afinal de contas você vem batalhando há um puta tempo nessa carreira e vê em mim a possibilidade de alavancá-la. Me trazendo aqui, me expondo aos seus, como um troféu. Talvez você quisesse isso e talvez eu também quisesse um monte de coisas, e quem sabe a gente pudesse fazer uma troca. Talvez você pudesse... chupar lentamente meu pau, enquanto eu escrevesse um artigo exclusivo sobre a grande revelação dos palcos desse momento. E talvez você pudesse até ser um pouco mais generosa, me encontrar vez ou outra, e tirar essa aparência de solitário que você diz que eu tenho. Talvez eu até pudesse me apaixonar por você, o que não é difícil. Em pouco tempo eu perceberia que a paixão é realmente uma invenção da literatura burguesa. Aí acho que você se arrependeria de ter me procurado e perceberia que uma bosta de um elogio no jornal diário não significa mais que uma boa trepada em uma noite fria; e que no dia seguinte não passa de mais que uma lembrança sem desdobramento. Talvez eu pudesse olhar nos seus olhos, como estou fazendo agora, e dissesse que o mundo é tão óbvio... que se a morte me tocasse nesse momento... seria ainda assim previsível."

Final da cena: a atriz vai para a casa dele.
Moral da cena: assim ficou bem mais fácil. Escroto -como muita coisa o é-, mas transparente -como muita coisa deveria sê-lo.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Déjà sentu

"Das palavras acadêmicas - sempre em marcha - ao ballet do bom uso vocabular: seria essa passagem o motivo da sua leveza e júbilo?
Assim etérea e eterna, qualquer mordida em qualquer maçã poderia lhe revelar um novo infinito fugidio."

Só para lembrar que no dia 25 de março pensei nisso. Um guia para o resto dos meus dias.

Etérea, eterna, fugidia.
Leveza e júbilo.

Reconquistarei isso tudo. Mas, como diz Agostinho, "não agora". Ainda não consigo.

O Santo e a Porca

Sócrates (Grécia clássica):
"Conhece-te a ti mesmo"

Eu (aqui, na "pólis" típica):
Agüenta-te a ti mesmo, infeliz.
...


Santo Agostinho (período patrístico, primórdios do feudalismo):
"Senhor, dai-me a castidade e a continência - mas não agora."

Eu (aqui, no período burguês com resquícios feudais):
Senhor, dai-me a reflexão e a paz interior - mas não agora.
Uns trocados, quem sabe, seriam de bom grado.
...


Blaise Pascal (modernidade, apesar de dissonar nela):
"O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas um caniço pensante. Não é preciso que o universo arme-se para esmagá-lo: uma vapor, um gota de água basta para matá-lo. Mas mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, pois sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhecesse isso."

Eu (aqui, na contemporaneidade dissonante):
Por favor, me esmague. Porque não consigo parar de pensar e já não agüento mais tanta insônia. Minhas olheiras não me tornam mais nobre que o universo.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Escrever

é sempre um estado de tensão. Mesmo que se fale em leveza.
Só se escreve aquilo que está para transbordar: a palavra é sempre a última gota.

A pressão colocada na ponta dos dedos no momento da escrita faz o papel das contrações de um parto.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Laissez passer



Quando o id chama, é melhor que o consciente o ouça?
Quando o instinto bate, deve-se abrir a porta?
Ele pode ser tanto dínamo quanto detonador. Obedecê-lo é fazer uma aposta perigosa, entre a fortuna e a ruína.
Depois de tê-lo libertado, só se pode olhar pra trás e ver o que foi feito.

Se foi um estrago, não se arrependa: não poderia ter sido diferente. Qualquer ação é preferível à inércia!
Sinta tudo, inclusive pesar. Menos culpa.
Talvez haja conserto, caso não fosse pra ter ocorrido. Ou quem sabe o melhor é ter o terreno limpo.
Aproveite a nova paisagem enquanto ela ainda tem alguma beleza.

Definições e notícias insólitas

Mais baixo que a Holanda.

Mais curioso que bisturi.

Seu superego era um marxista ortodoxo, seu id era um liberal cheio da grana.

Eu-larica: o poeta usuário.

"Godard: do inglês arcaico, 'um deus que arde'" (pérola orkútica).

Manchete: O ex-nadador Chou-Cha mandou 'Beijing Beijing, chao chao' para as piChinas e virou empresário de Cesar Cielo. (bem Wilson)

domingo, 25 de maio de 2008

Arte como desfamiliarização

Paul Cézanne - Lac d'Annecy - 1896.

"Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicação... A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de Natureza inumana sobre a qual se instala o homem... a paisagem aparece sem o vento, a água do lago sem movimento, os objetos transidos hesitando como na origem da Terra. Um mundo sem familiaridade... Só um humano, contudo, é justamente capaz desta visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída... O artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber."

Merleau-Ponty sobre Cézanne. Seleções da Marilena Chauí no seu Convite à Filosofia.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

TPM


O interessante em ser mulher é alternar entre momentos suicidas ou homicidas e momentos entusiastas ou generosos em menos de dois ou três dias.

Só tendo ovário para saber.

Momentos limites


O chão em volta cede. Só uma coluna de terra bamba lhe resta para sustentá-lo por sobre as entranhas escaldantes da Terra, que já fazem arder a pele fina do rosto. O melhor a fazer é se jogar dali ou fantasiar algo que novamente lhe alçaria a um piso seguro, mesmo sabendo que seria pura invenção?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Poetas

Há pessoas que elogiam por carência e egocentrismo. Por carência, querem que o outro reconheça a beleza do que foi dito. Por egocentrismo, o que dizem se refere mais às suas capacidades que às qualidades dos elogiados.

Preferem ser poetas, ainda que ocos, a amantes.
E como são tristes, ainda que belos, os poetas.

Até conhecerem alguém imune aos seus cantos de sereia, porque vê o vazio por dentro do veludo que os esconde. E a amnésia lhes toma, fazendo-os esquecer das notas com que embriagavam quem os ouvia. Tentam falar daquilo que antes entoavam e nunca sentiam, mas só saem vespas de suas bocas. Assim sem versos, viram cinza e pó, sem fênix ao fim.

Pois como são tristes, ainda que belos, os poetas! Entoa-dores.

Clean


Quer saber? "E que tudo o mais vá para o inferno!" No more anxiety.

Catarses são necessárias, renascimentos também. E por favor garçom, vê mais uma dose disso tudo; puro, sem gelo. Que é para descer rasgando pela garganta, amarrar o rosto inteiro e carbonizar o passado próximo todinho. Até mais ver, amargura. Até a próxima gota.

Porque agora eu me quero nua. Que venha o frio do ártico ou o calor escaldante: minha pele veio ao mundo para senti-los. Tomei um banho ácido, estou limpa. Inodora e incolor, pronta pra novas sinestesias.

sábado, 17 de maio de 2008

Mascando...


Será que os animais choram?
Porque qdo eu pensei no desgosto mais amargo do mundo, só consegui defini-lo comparando-o à vida estúpida - tornada estúpida por nós humanos - dos pastejantes. Um eterno mascar de feno. A imagem passou pela minha cabeça, pensei no meu "ultimamente" e me senti uma eqüina. Não égua, mas eqüina, sem antropomorfismos maldosos. E nessa pele senti uma amargura sem diluições, e não consegui chorar: nunca vi lágrima em olhos não-humanos.
A vantagem de passar por isso é saber da capacidade - rara - de sair de si, de usar os sentidos do que é outro. Nesse caso, um outro com pêlos e cascos. Quem sabe fui passiva nessa experiência. Talvez algum animal colocou-se em meu lugar, me invadiu. Ou nós dois criamos juntos um momento só nosso, em que só nós sentimos aquilo. De qualquer forma, houve uma fusão.
Tá, fui longe. Mas isso faz lembrar uma coisa simples. Faz lembrar que o que vale a pena no contato com os outros é esse criar de momentos e espaços únicos. Momentos em que tanto uma quanto outra pessoa (ou outro ser) deixam suas preocupações individuais e compartilham o que estão vivendo, como se tivessem parido uma à outra naquele instante. Ou quando recriam espaços, dando novos sentidos àqueles que, de tão cotidianos, eram despercebidos. É piegas, mas dizem que na amizade e no amor isso acontece.

Qual a relação disso com meu momento eqüino? É que alguns estados de espírito não são transmissíveis às pessoas, pq são únicos demais. Quem em sã consciência compartilharia com alguém a sensação de que a vida é um mastigar eterno do pouco que nos cabe? Só um ser encilhado entenderia. É que em bichos é mais fácil achar essa capacidade de deixar-se um pouco para morar no que vai além de si.

...

Senti como se estivesse mascando, mascando até Zeus sabe quando. E fui me deitar assim, mascando. Quem sabe em sonho esse pasto-mundo não tenha tantas cercas.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Virada Cultural

Eu não ia postar, ficou "jornalístico demais". E aconteceu há um tempo.
Mas a fofíssima pediu, então lá vai:

Os nutricionistas recomendam: quanto mais variado e colorido o prato, maior o valor nutricional. Não seria abuso metafórico usar dessa mesma regra para avaliar a saúde de um povo: a diversidade de manifestações culturais é sinal de robustez de um povo. Nesse sentido, a 4ª Virada Cultural, que reuniu mais de 800 atrações nesse fim de semana em São Paulo, foi um tônico para qualquer alma moribunda.

Exemplos dessa riqueza se mostraram desde o trajeto entre o Mercado Municipal, onde desceram os visitantes maringaenses, e o palco da avenida São João, onde pisaram Cesária Évora, Gal Costa, Mutantes, Zé Ramalho e outros nomes de peso. Só entre os quinhentos metros percorridos entre a Ipiranga e o referido palco, era possível ver bares requintados, salões de beleza populares, cinemas eróticos e a Igreja Internacional da Graça de Deus, de onde o missionário R. R. Soares apresenta o Show da Fé.

A pluralidade cultural faz parte do cotidiano paulistano. E ela foi confirmada nesse evento que reuniu aproximadamente 4 milhões de pessoas, com 26 palcos só no centro. A presença de tribos urbanas distintas não deu origem a nenhum contratempo do porte da Virada do ano passado, quando houve confusão durante o show dos Racionais MC´s. Críticas, talvez aos banheiros químicos, que não impediram que a urina corresse pelas calçadas, e aos problemas inevitáveis a qualquer aglomeração de pessoas.

Entre a multidão que se empurrava e os artistas, organizadores, imprensa, celebridades e convidados desfrutavam de um espaço privilegiado em frente a cada palco. Ali era possível ver, por exemplo, o olhar fixo do cineasta Cao Hambúrguer nos pés descalços de Cesária Évora. A alguns metros dele, uma comissão de cabo-verdianos reverenciava a conterrânea, empunhando a bandeira azul estrelada.

Ouvir de Gal a comparação entre o evento e os festivais de músicas dos tempos do tropicalismo, ver a baterista dos Mutantes enérgica a ponto de quebrar a baqueta, presenciar Arnaldo Antunes descer do palco para conversar com os presentes foram alguns dos momentos ímpares que serão preservados na memória de quem pôde conferir a Virada.

Junto a essas lembranças, fica o desejo de que mais maringaenses compareçam tanto a 5ª edição do evento paulistano quanto àqueles que podemos presenciar em nossa cidade. Eventos como o Femucic e projetos como o Convites à Dança, Convite à Música, Convite ao Teatro, Um Outro Olhar e outras tantas iniciativas que procuram trazer esse clima saudável de diversidade cultural para Maringá não podem ser esquecidos nem menosprezados.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Aparição da incompreendida



- Quem é Fernando Correia?

Na sala de 160 pessoas, um gordinho sério levanta a mão.

- Pode pegar seu material.

Quando ele chega próximo à porta, o inspetor lhe avisa, baixinho (e como eu estava sentada perto dela, consegui ouvir):
"Sua mãe ligou. Parece que seu pai não está muito bem, melhor você ir para casa."

(por uma semana ele não veio às aulas depois disso, de luto)


Fiquei branca na hora. Mais uma vez a morte mostrou-se presente, assim de perto. Como se ela avisasse a todos naquele momento: "Sabe isso tudo que vocês leram, fizeram, pensaram, falaram, sentiram até hoje? Não tem sentido nenhum. EU sou o seu sentido e de tudo o que se diz vivo. O melhor a fazer é desistir agora, antes que vcs olhem para trás e percebam que foi só uma perda de tempo." Claro que meu pensamento foi pro infinito e a fala do professor virou zumbido até o fim da aula. Eu só ouvia a voz cavernosa do não-ser.

Calma! Cair nos encantos da morte - sim, ela é sedutora! - está fora de cogitação. Mas nem por isso o que ela disse não tem razão. Para quem acha que um mundo além desse é tão provável quanto o Coelho da Páscoa, uma fala daquela faz mais sentido que todas as fórmulas que o homem inventou até hoje para ter alguma certeza.

Ainda assim, prefiro persistir no absurdo que é viver.

domingo, 11 de maio de 2008

Dilacerando-se

Enfiou a mão na boca e foi buscar no estômago toda raiva que juntou até ali. Tirou de si um bolo que fedia a enxofre. Esculpiu aquilo, fazendo uma pedra informe, e deixou secar ao sol. Usaria a obra para talhar o crânio do primeiro que lhe perguntasse, mesmo sabendo a resposta, pelo porquê daquilo tudo. Escorria ácido por seus poros: quem a desejava era corroído até o osso. Ela era uma bacante, e ai do Penteu que tentasse escutar de perto seus rugidos!

Silêncio! Deixem-na gerar esse filho amargo que carrega em si. O filho está morto em seu ventre, mas ela não sabe e espera ansiosa pelo nascimento. Deixem-na devorar a si própria em rancor, quando perceber que os meses cheios do seu afeto foram ilusão. Silêncio! Ouçam seus gemidos de morte, quando ela souber do fim.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Maria não pára III

-Não, mainha, não vou jogar fora meus bonecos de argila!

-Mariquinha, minha flor! Vc já criou e quebrou tantos! Esqueceu?

...

-Tá bom então, minha mãe. Mais uma vez não custa. Posso jogar tudo no lixo?

Maria esvaziou o quarto, tão cheio de entulhos que ela nem conseguia mais andar nele. E pegou mais argila no sótão infinito pra criar outras coisas. Porque parar ela não podia.

Voyeurismo

Voyeurismo psicológico pode ser algo muito interessante. Vai além da curiosidade pelas vidas alheias expostas na net. É mais um farejar de minúcias, trejeitos, manias e exotismos implícitos em todo mundo. Também não é buscar essas coisas em uma só pessoa -isso é fixação-, mas interessar-se pelo que é pequeno em tudo.

Como quando você passa por por alguém com pressa e vê que ele ou ela está andando sorrindo. Andar sorrindo, puxa! Não tem como não sorrir também, a não ser que você e seu umbigo formem um só bico imenso de desgosto pela vida. Qual seria o motivo da felicidade? Será que mais algum traço do rosto - uma ruga talvez - o revele? Será que a cor da blusa, o corte do cabelo, a idade ou as mãos no bolso nos dizem algo? O que teria tanto valor para ela, que tenha dado certo e a deixara assim? Será sorte no amor e no jogo - obviedades - ou ela também maravilhara-se com algo pequeno, como o sorriso de um terceiro transeunte?

Quando menos percebe, você já está inexplicavelmente sorrindo, contagiado pela dúvida e pela minúcia. Santa curiosidade! Só ela para fazer-nos ver as coisas com olhos de águia. A visão do que é microscópico é o faz a vida parecer valer a pena, mesmo quando ela não vai lá aquelas coisas.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Meninos, lesmas e círculos



A lesma, por onde passa, deixa marcas viscosas que denunciam suas andanças.

Tinha uma lesma que um dia olhou pra trás e percebeu que havia feito círculos e mais círculos. Que gastara anos de sua vida apenas fazendo círculos gosmentos. E viu graça no desenho, porque já tinha ouvido falar de um sábio chinês que dizia que não levar-se a sério era sinal de autoconhecimento. Quer gozar mais de si mesmo do que fazer das pernas o próprio destino, esquecendo de levar em conta os roteiros da razão ou do coração? Enquanto ela escorregava na sua gosma, ia se assistindo como a um filme barato. Filme daqueles que a gente não precisa pensar, porque entregam o enredo embaladinho, pronto pra ser servido.

E a lesma olhou aquele muco todo e pensou no tempo que levou para fazer aquilo e no caminho inteiro que percorrera. E sentiu como se estivesse no ponto zero de sua vida. Que cada círculo que fizera tinha seu ponto zero, e que todos eles a levavam a lugar nenhum. Viu que tudo começara no ponto zero zero, quando era uma lesminha e dera sua primeira escorregada, toda sem jeito. Foi quando começou a vida errante e errada.

Uma fila de formigas saúvas passava a seu lado com ar de desprezo. Como eram poderosas aquelas formigas! Em uma noite, conseguiram carregar nas pinças a horta inteira do pai do menino que brincava logo ali. Quanta força, quanta determinação! Mas que dó que deu quando o menino pegou a lupa pra ver formiga morrer queimada pelos raios de sol.

Quanto círculo, quanto círculo! Quanto círculo gosmento, quantos meninos brincando de roda, quantas formigas fazendo trilhas circulares, quantas mães mexendo em círculo a panela do feijão que o menino vai enrolar pra comer! E o pai, que agora devia estar rodando a cidade inteira pra voltar do serviço? Ele tinha que trabalhar pra não deixar a conta naquele zero redondo que estava, motivo das últimas zonzeiras da mãe. Ciclo vicioso.

O chinês estava certo, não havia nada que não fosse motivo de riso. A lesma sentiu que estava tendo uma epifania circular, e riu, riu até estrebuchar. Mas ela estrebuchou foi do sal que o menino jogou nela. O pivete caiu na gargalhada quando viu a lesma ferver, contorcendo-se em espiral. E ela murchou toda e terminou-se num sorriso de boca de lesma.

Gato

Nem bem acordo, enrolando-me em edredons, e ele já sobe na minha cama com aquelas patinhas cuidadosas, procurando o melhor terreno para pisar. Tenta não me incomodar. Enfia a cabeça por sobre o edredom e se acomoda no vão que meu corpo deixa nele. Enrola-se até que fique coladinho a mim. Fica só com a cabeça fora das cobertas, com aqueles olhões verde-mar-limpo abertos. E me olha. Olha tão fixamente que parece que sou o motivo que preenche sua vida. O único motivo. Não sai de lá enquanto não mudo de posição ou me levanto. Caso eu levante, ele prefere me acompanhar do que aproveitar o finalzinho do calor que nós dois deixamos no colchão.

São lições de gatos pra homens. Pena que eles não aprendem.


domingo, 4 de maio de 2008

Maio de 68 e maio de 08

Estudantes durante os confrontos com a polícia em maio de 68 na França.


"Desde 1936 tenho lutado por aumentos salariais. Meu pai, antes de mim, também lutou por aumentos salariais. agora eu tenho uma tv, uma geladeira, um Volkswagen. Porém, apesar de tudo, minha vida continua sendo uma vida de cachorro. Não discuta com os patrões, elimine-os."

"O poder tinha as universidades, os estudantes tomaram-nas. O poder tinha as fábricas, os trabalhadores tomaram-nas. O poder tinha os meios de comunicação, os jornalistas tomaram-na. O poder tem o poder, tomem-no!"

"O que queremos, de fato, é que as idéias voltem a ser perigosas"

"Sejam realistas, exijam o impossível!"

"A revolução não é a dos comitês, mas, antes de tudo, a vossa. Levemos a revolução a sério, não nos levemos a sério"

"Acabareis todos por morrer de conforto"


"Camaradas: a humanidade não será salva até o dia em que o último capitalista for enforcado nas tripas do último bancário". Frase de Gramsci escrita nas paredes de Paris durante as barricadas.


Há 40 anos essas e outras frases emblemáticas eram entoadas pelas ruas ou escritas nas paredes parisienses. No mesmo ano, o clima revolucionário espalhou-se pela Europa e Américas. Essas frases, porém, já não fazem mais tanto sentido para os europeus.


Silvio Berlusconi, reeleito primeiro-ministro da Itália no mês passado.


Hoje, o Velho Mundo Ocidental vem elegendo governos de direita na maioria das eleições ocorridas desde 2007. Nicolai Sarkozy na França, Silvio Berlusconi na Itália,
Andrus Ansip na Estônia, Matti Vanhanen na Finlândia, Anders Fogh Rasmussen na Dinamarca, Yves Leterme na Bélgica, Costas Karamanlis na Grécia, Ian Paisley na Irlanda. A exceção é a Espanha, que reelegeu o primeiro-ministro socialista Jose Luiz Zapatero.


Nicolai Sarkozy, eleito presidente da França há um ano.


Dominique Reynié, professor de Ciências Políticas do
Institut d'Études Politiques de Paris, diz ao Le Monde que "quando a conjuntura econômica vai bem, há uma demanda de liberalização, que a esquerda não parece capaz, salvo exceções, de responder de maneira convincente." Também ressalta que a direita tem vantagem por trazer um discurso de proteção da identidade, de segurança, e por trazer à tona a questão da imigração. Isso sem contar com o envelhecimento da população européia, que segundo Reynié faz com que ela experimente mais medos e ansiedades.

A direita conquista o eleitorado europeu tocando em pontos nevrálgicos e dizendo estar mais bem preparada para enfrentá-los que os sociais democratas. Vence recorrendo ao discurso do medo. Para quem clamou na juventude por idéias perigosas e pelo fim do conforto burguês, os europeus colocaram o rabo no meio das pernas e foram dormir na casinha.

sábado, 3 de maio de 2008

3 de Maio, 200 anos

"3 de Maio de 1808", de Francisco Goya, retratando o massacre de civis espanhóis pelas tropas napoleônicas.


Tropas americanas no Iraque, que tiveram 46 baixas em abril. Em apenas um dia (28/04), porém, mataram 38 supostos criminosos em Bagdá. Três dias antes do massacre, Bush pede ao Congresso "que aprove US$ 70 bilhões (R$ 115,2 bilhões) para as campanhas militares no Iraque e Afeganistão em 2009, quando entregará o governo a seu sucessor". Folha, 2/5/8.

"As forças americanas mataram 14 rebeldes xiitas em uma série de enfrentamentos no bairro de Sadr City, na capital iraquiana." Folha, 3/5/8.




quinta-feira, 1 de maio de 2008

Desabafo

Um dia me obrigaram a ouvir isso, ou algo parecido:

"Aqueles que estudaram em escola privada serão os futuros empresários, presidentes de corporações, grandes nomes entre os profissionais liberais, industriais. A eles, o acesso a boas faculdades é mais garantido. Porém o fato de que ocuparão altos cargos não os dispensa da preocupação com a qualidade do ensino gratuito, porque é daí que virão seus funcionários. Ninguém quer funcionário desqualificado."

Pode até ser fato, mas não regra. Se tomado como regra, esse pensamento é mais justificativa de uma divisão social estamental. E o pior: usa a máscara da responsabilidade social.
Dá até pra fazer uma inversão, que seria aplicável a muitos casos que conheço. Que uma escola privada fornece mais conteúdo é inegável. Mas exatamente por isso, por "dar na boca, mastigadinho", a curiosidade, possibilidade de autodidatismo e a sede de conhecimento podem ser abafadas. Para quem tudo veio em doses mirradas a vontade aumenta, e o vigor para correr atrás também.

Isso não é uma regra. Tem até mais cara de exceção. Mas só por existirem alguns desses casos, cai por terra a lógica da imobilidade. Isso sem contar que eu vi muito mais qualidade humana no ensino público. O que também não é regra, mas fato.

Pronto! Desabafei.
É que me deu ódio ouvir aquilo.