domingo, 20 de junho de 2010

Só no papel

Eu não saberia definir o que me atrai em você se não tivesse como testemunhos únicos o papel e a caneta. As sinapses já não ajudam, insistem em cair no lugar-comum você quando o correto seria desembocar num eu.
Não, meu umbigo não é o cais dos meus impulsos. A busca é mais por um eu coletivo, por uma unidade que se reflete em você, mas também nele, ou ali, ou quem sabe num outro além. É meu tesão pela humanidade que deveria reluzir em sua testa.

Nada de heroico nem aclamado pela coletividade. Quero, sem nem saber bem como querer, o instinto de sobrevivência e seu filho egoísmo, num convívio frágil com o jeito pueril e a necessidade de aprovação. Os erros, finalmente tolerados pelo meu superego bolchevique. Quero uma defesa imatura, que permita a invasão aos seus ridículos, para só assim tolerar os meus. Quero isso em você, mas também nele, ou ali, ou quem sabe num outro além.
Mas isso, nem você, ele ou mais ninguém precisam saber. Só o papel e a caneta.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Verborragia


Quando a indigestão não se resume a antiácidos e chás de boldo, o melhor é cuspir palavras.


Não estava grávida de cinco meses, não tinha prisão de ventre, nenhum espírito a possuia, mas a vontade era de livrar-se de algo que já era muito mais ela que ela mesma. A escoliose estava aguda de carregar aquilo consigo, e cada palavra dita era um plágio involuntário - não era por si que falava. Aquilo que a tomava, porém, não tinha consciência alguma do próprio efeito, o que tornava a existência dela, nesse estado, uma sacola descartável recheada de absurdo.

Vivia papagaiando pensamentos que só a ela interessavam - e seguia ouvindo "ahans" e outros conselhos tão impessoais para quem os formulava como para ela, que os ouvia. E não tinha olhos para o mundo, como a mosca não o tem quando uma lâmpada qualquer a hipnotiza. A luz era míngua e sabidamente sem graça, mas sua fraqueza não permitia virar o pescoço para qualquer outra que lhe dissesse respeito.

Sonhava com o dia em que cuspisse palavras que fossem suas, e não as ditas ao pé do ouvido por algo que ela mesma criara.