sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Olhar


A nós nos foi negado o olhar geométrico dos insetos, ou o aguçado das aves de rapina. Não podemos ver os matizes do ultravioleta, nem o espetáculo do infravermelho. As cores, dessas temos apenas a impressão distante de sua existência, algo como uma amostra grátis de perfume vindo de uma fábrica de odores inimagináveis. Ainda assim, a visão é uma matriarca, ao mesmo tempo ditadora e encantadora, que tanto submete hierarquicamente os outros sentidos como consegue nos arrebatar até os sentimentos mais sublimes.

Que os sentidos trabalhem em sinestesia! Da visão de um bolo fumegante, sintamos a textura aconchegante de sua massa fofa e do vistoso glacê. Mirando um céu azul apagado, tremamos de frio e fome. Metamos o pé no córrego gelado, observando seus desenhos fractalizados e sua sinfonia contínua. E que tudo isso misture-se em cada audio, em cada foto, e, porque não, em cada texto que se disponha a mostrar um pouco além de uma breve avistadela em relação ao mundo.

Nesse caldeirão de sentidos, um espaço deve ser reservado à visão interna. Aquela que imagina, que junta fragmentos de realidade para formar a sua própria, e que também constrói o que os olhos pensam ver objetivamente. Uma folga deve ser dada pelos sentidos para que essa função tão humana, porque tão produtora, encontre os meios que lhe permitam uma constituição saudável.


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ainda o desejo


Desejo, novamente ele é a pauta do dia. A pauta, o editor, o deadline, o patrocínio. Mas neste caso, o patrocínio está sedento por leitores em falta, a pauta é impossível de ser realizada, o editor está desesperado para que a matéria se cumpra e o deadline é logo ali. Desejo obsessivo, daqueles que ofusca qualquer outro objeto que lhe retire a atenção. Em frente a sua cobrança, resta eu ali mirrada, destilando-me até minha última gota, na esperança de que ele se torne fato. Porque quando cumprido, ele deixará de me julgar mostrando seus caninos pontiagudos pra ronronar sob meus pés.

Por enquanto, ainda sinto seu bafo de besta impulsiva roçando minha jugular.


(Hormônios à flor da pele me levaram a fazer uma visita a esse blog moribundo.)


Galgando



Numa caça, o cão galgo perde o interesse pela lebre apanhada tão logo ela morre entre suas mandíbulas. Quando a presa deixa de movimentar-se, o cão caçador cospe-a à terra e procura outras vidas em fuga para dar fim.
Quanto mais distante a presa, mais atrativa ela é para o galgo. E dificilmente ele dá-se por vencido. Mas o ciclo é sempre o mesmo: mirar o animal, preencher-se de desejo, contrair até o último músculo para capturá-lo, observá-lo jazer na boca, cuspi-lo e, por fim, visar outro ainda cheio de vida. Não há um ponto final, nem a satisfação que o acompanharia.

Um cão assim não persegue sua caça... Persegue sua própria obsessão.

Ele persegue as dele. Nós, as nossas.
Com a diferença de que as deles são palpáveis. As nossas, ilusões que criamos devido a uma incapacidade de plenitude.

A cada período, uma pessoa, uma posse, uma ocupação, um lugar novo para desejarmos. O que seria muito interessante, se no fim restasse outra coisa que não o vazio.

(A postagem original foi de 29/05/08. Mas o karma se repete)

sábado, 17 de outubro de 2009

Il pleut, il mouille




Nimbosa tarde. Uma, duas, algumas gotas dedilham verdes folhas, contrariadas pelo sobe-e-desce a confrontá-las.
Três, quatro, muitas. Eis que cedem, submissas e lânguidas, ao frenesi das águas. Como o rubor de dama ao leito, explode o verdil daquelas peles vasculadas.
O astro rei, voyeur por entre as nuvens, arreganha seu sorriso de velho safado. Satisfeito, faz pender curva a bandeira homossexual, que só é erigida em dias vigorosos. Tomba ela do céu até onde os meninos e meninas da terra não conseguem satisfazer sua curiosidade pueril.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Verso em branco


O sol faz do dia o Saara.
De cada poro, uma garoa sangra.
Eu sinto sede do teu som sibilino
e me escaldo à tua procura
no oásis do meu delírio poético.

Meu Drummond, sobre sua pedra
sofre a elisão dos passos teus
que guiariam meus versos rotos.

Eis que minha musa me açoita ao ouvido:
- Sobram-te as ideias geniosas;
falta-te um gênio que a mim encantaria.
Quem o diz é tua folha de papel, que persiste em branco
como o sorriso daquele a quem sou prometida.


(obrigada, Túlio e Rafa)