sábado, 30 de agosto de 2008

Nó na gravata

Enquanto eu preparava o almoço, Antônio lia o jornal. Sempre fez questão de ler, antes de tudo, o caderno internacional - dizia que o Brasil de pequenas políticas lhe dava claustrofobia. Mesmo que há mais de mil léguas, tomava a guerra dos rincões do mundo como se tivesse acabado de cair uma bomba no quintal vizinho. Para o cotidiano de casa, porém, era hipermétrope - e já fazia quatro anos que eu era só mais um de seus compromissos mais próximos e rotineiros. Não que não precisasse de mim, como o bêbado precisa do poste para escutar-lhe as mágoas a que ninguém dera ouvidos. Mas eu gostava de ser essa luz míngua em sua vida, e não me importava com as moscas que me circundavam zonzas enquanto eu ouvia os pesares daquela humanidade em putrefação.

Antes de sair, lustrei-o com meu sofisma de bom-tom, elogiando sua gravata e a noite anterior. Comprazia-me em fazer vibrar aquele sorriso arrogante de quem vencera na vida e deixara a bandeira de desbravador no alto de um monte só para ser invejada por almas de menos fibra. Dando seqüência ao costume, pedi-lhe um beijo, com a delicadeza de quem pede a salada distante no almoço de domingo. Distante e quase contrariado ele atendeu a meu favor. Mas depois sorriu maliciosamente, associando esse implorar por atenção a uma de suas conquistas, a maior delas, e saiu convencido como um Alexandre. Meu deus! Há quatro anos eu estava criando esse pavão de belas penas, alimentado pelo vanilóquio bendizente das minhas palavras. Mal sabia ele que, enquanto eu o inflava com uma mão, segurava a agulha com a outra, sem saber ainda o que fazer com ela - pode ser que nem mesmo quisesse usá-la.

Mas eu não podia jogar janela afora estátua tão bem esculpida, ainda que ela tenha tomado consciência de si e deslumbrara-se com a própria imagem. Em mãos de demiurga, eu talhara cada pequena curva daquela presunção com a precisão do beija-flor que prepara ninho - como então abandonar a minha mais autêntica obra? Mesmo Deus mantia os filhos de Adão no mundo, ainda que esses lhe ferissem continuamente a criação. Que eu mantesse ao lado, pois, essa estátua que me açoitava o orgulho, como se a criatura, pior que fosse, ainda era a razão de ser do criador. Talvez não tão ofuscada quanto antes: o correr dos dias me abriam os olhos lentamente, mostrando-me a fragilidade daquele vaso chinês a que eu tomara por fortaleza. E o vaso já revelava estar trincado.

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Tremores raivosos da terra fazem descer ao chão séculos de história e matam dezenas de milhares. Riquezas da terra são descobertas e devoradas como o pão daquele que há muito não vê comida. Tornados cobram aos homens o preço da colonização de áreas que a natureza não lhes dera aval para tal. Diante disso tudo, Júlia elege como desastre número um do dia o arroz que queimara há pouco. Notícia era para ela o aviso da falta de café na despensa; tudo o mais eram curiosidades que, no máximo, a ajudariam a preencher uma ou outra palavra das cruzadas que comprei para ela para preencher o tempo inter-refeições. Mas eu não a queria diferente disso: melhor míope, porque assim sobrava mais foco para o universo complexo do lar.

Ainda que as flutuações globais fossem o motivo das minhas preocupações maiores, eu não deixava de ver no bom correr da casa, no oikos nomos, os feitios de uma deidade ardilosa. Impressionava-me aquela Júlia de mil tentáculos, um para ajustar cada detalhe, raramente percebidos por mim. O senso estético de miudezas superava em muito o prático, e, mais danoso que isso, também subjugava o econômico. Justificável, portanto, a divisão de papéis que eu impora: ela realizaria-se sob nosso teto comum; eu, sob a ausência deste no mundo. Eu, Zeus, administrador do céu e da terra; ela, Hera, senhora do aconchego caseiro. E, ultimamente, até mesmo a ira dessa última eu tenho percebido nela. Se a beijo, não sinto mais o velho gosto do feijão que foi provado só para ver se agradaria a meu paladar melindroso. Sinto agora aquele gosto venenoso de vingança - um desconhecido meu, porque nunca precisara provar ou usar dele. Em qual dos meus deslizes eu teria feito ruir minha Júlia servil?

Antes de partir para o labor, ela ma lembrou de beijá-la. Desconfiei que aquele pedido fosse um teste, que ela queria medir meu afeto em um gesto. Relutei, mas não levei, na hora, a desconfiança a fundo, e cumpri o pedido de um modo tão morno quanto o apetite sexual dela na última semana. Mas aquilo ficou martelando meus pensamentos durante a tarde toda. Um gosto de arroz queimado na boca, como se eu houvesse cozinhado demais algum problema que se arrastava há tempos, fez-me esquecer da expectativa do pedido de trégua entre sunitas e xiitas das últimas manchetes. Há quase vinte anos da queda do muro, quando eu a assistira na adolescência, e uma paz armada novamente sendo formada entre o reboco das minhas paredes.

(continua)
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Um comentário:

Wilson Guerra disse...

Tá todo mundo esperando a continuação :)