"quando o frio, a dor nas costas e a rotina escrava são vencidos pelo voyeurismo"
A proximidade do dia dos namorados, mais que o incômodo do andar esquivo das milhares de pessoas no coração do comércio ilhéu, oferece um menu farto de figuras humanas observáveis. Flanando por ali, eu já tinha me cansado de mirar a velha curvada com o bebê gordo no colo, até que um homem com um papel na mão quase me derruba num esbarrão. Desculpa pra quê, se o que importa nesse mundo são os prazos? Depois do incidente, começa minha caça àquela pessoa em fuga - e dura não mais que dez minutos, o suficiente para pensar numa vida de possibilidades sobre o desconhecido. O mistério? Só o porquê da pressa e daquele papel na mão. Não era minha pretensão decifrar a humanidade em um só personagem.
Não fosse a correria exagerada, ele não tinha nada demais. Relativamente bem apessoado, porte médio, cabelos castanho-escuro, camisa listrada em branco e azul marinho, calça jeans aprumada. A discrição não atraia tantos olhares femininos, mas caso alguma mulher insistisse, seria desencorajada pela aliança dourada de quase um centímetro de largura brilhando no dedo anular da mão esquerda. Como o sapo de cores berrantes expõe na pele seu veneno, o apressado passante gritava ao mundo sua indisponibilidade em ouro 18 kilates.
Atravessamos a praça XV de Novembro. Ah! Não há como não se maravilhar com a figueira sustentada por pilares frágeis que não condizem com sua grandiosidade. O tempo naquela praça parece que resolveu se aposentar ao mesmo tempo que os frequentadores do lugar, só pra ver a árvore crescer milimetricamente. Os senhores e poucas senhoras dali já não se atentam ao zum-zum da cidade, que acelerariam o ritmo de suas vidas já bem perto da corrida final. Próximo à figueira, o último suspiro parece mais demorado e distante.
Mas é só dar um passo além do ambiente mítico da praça que a realidade sai do slow-motion e avança em fast-forward. E eu, que havia me perdido em devaneios, perdi também meu personagem, misturado entre os milhares de apressados da Rua Deodoro. Elocubrações sobre a vida e a morte são desperdício de tempo e dinheiro. Esse pensamento era inverso ao do jovem Hare-Krischna de veste laranja-fogo e um tufo de cabelo amarrado na parte de trás da careca reluzente. Ele tentava tentava se comunicar com os passantes arreganhando um sorriso bobo de quem viu o nirvana e não voltou mais. Justo para quem ele tentou entregar seu folder de amor pelo mundo? Para meu personagem, que retornou à minha mira depois de avistado no encontro insólito. O papel na mão do homem não permitiu que ele recebesse o folder das boas novas, decepcionando o bem-intencionado "careca-com-tufo-zen".
Avistei o logo de uma loja de roupas que despontava há uns 15 metros à nossa frente. Ele entrou no lugar, que vendia produtos desejados por adolescentes entre os seus 12 e 20 e poucos anos de idade. Modinha Malhação, com direito à banners de surf e casais de corpos esculpidos em praias paradisíacas na vitrine. Não era exatamente a moda sóbria do homem em fuga. Alí, um micro pedaço de pano multicolorido, que no lugar era chamado de saia, custava mais que a compra mensal de muita dona-de-casa para uma penca de filhos.
Enfim, as peças encaixaram-se: o homem era gerente da loja e o papel devia ser algum boleto de compra de uma loura cujo tamanho do crédito bancário e do silicone eram inversamente proporcionais à paciência. Nem com mil perdões pela demora de dez minutos o gerente conseguiu arrancar-lhe um esboço de sorriso. Do alto do salto à lá Carmen Miranda, a loura presenteou-se a si mesma e ao namorado com um amontoado de sacolas cheias, revelando para a amiga que o prazer da compra foi embora com a espera fastidiosa. Ela não tinha tempo a perder: parecia estar atrasada para a consulta no esteticista. As duas peruas seriam ótimos personagens a observar, não fosse nossa pressa - a delas, para tratar da cútis; a minha, para não perder o ônibus. Pois bem, que se cumpram os papeis.