segunda-feira, 30 de junho de 2008

No meio-termo




(É pretensão vã buscar nas criaturas apenas a originalidade.
Só as percebem sensibilidades igualmente singulares,
tão escassas quanto flores no deserto.)

Aos que são flores, uma gota d'água é oceano.
Aos que são deserto, nem o Pacífico toca o peito.
Aos que são húmus, nem ressequidos nem delicados,
resta fazer brotar de si algumas pétalas passageiras.

Porém das flores, um sol mais forte retira o viço.
E do deserto, monção nenhuma devolve a vida.
Já quanto ao húmus, extremo algum lhe tange a cara.

Nem ressequidos, nem delicados:
percebem em partes e repelem em partes o mundo que avistam.
De pétala em talo à pétala no solo, vivem e deixam de viver.
No meio-termo, em meio ao medíocre.
Além do espinho, aquém do pleno

sábado, 28 de junho de 2008

Queria ser

...como meu gato sarnento, que nunca vai sentir o peso da culpa por ter dito uma estupidez imensa. Mais uma vez.

Porque nem só de sapiens vive o Homo.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Queria ser

...como meu gato sarnento, que faz da bagunça do rack sua cama confortável. Dorme feito um pivete cansado numa aula de trigonometria, facinho e gostoso.

Nego só suas sarnas. Delas, bastam as metafóricas.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Aula de trânsito



(O semáforo fica vermelho)

- PARE!
- Tá, parei. E agora?
- Agora repare.
- Em quê?
- Só repare. Como se reparar fosse um verbo intransitivo.


...



...


- Gostou?
- Estranho. Mas bom.
- O que sentiu?
- Imensidão. Liberdade. Vácuo. Um pouco de desamparo, mas desamparo de mim mesmo: senti-me ao mesmo tempo o órfão e o pai que o renega. Diluí meus contornos no vazio, como se tivesse deixado de ser uma forma geométrica rígida. Como se eu fosse uma mancha disforme vagando no colorido da existência.
- Ótimo! Mas agora volte a ser um quadrado. O semáforo ficou verde.


domingo, 15 de junho de 2008

Streap tease

Na net, onde o tempo máximo de reflexão é de uns 5 segundos, nos pedem a mais metafísica das definições: "quem sou eu". Perguntar uma coisa dessa é desistir de uma resposta precisa. Não dá pra despir-se assim tão explicitamente numa página da rede! No máximo, um streap tease vagaroso, onde o jogo de oculta-revela vale mais que a nudez em si. Uma ou outra peça sempre fica - geralmente a máscara, esquecida no rosto devido ao uso constante.

Pois bem, deu vontade de brincar de streap tease. :p

A primeira peça a ser tirada? Que tal a da família, que cobre boa parte do nosso corpo durante a vida inteira? (é, baby... impossível fugir dos genes e dos tiques).
A minha, um tanto exótica desde os primórdios. Um pai de 31 - mesmo longe, alguém que não faz falta, infelizmente - sobe barbado ao altar junto a uma mãe de 21, descalça e descabelada. Amor? Que nada! Só pelo desejo mútuo de morar em Florianópolis. A separação veio rápido, é claro: eu tinha menos de 5 meses. Ótima experiência! Desde pequena, o casamento deixou de ter os ares graves de uma instituição sagrada. Nos seus maus galhos faça-se a serra. Não boa a poda? Corte-se a amarra!

Poesia, na terceira série, era para mim sinônimo de rima. Durante dois bimestres obriguei-me a encontrar palavras cujos sons fossem semelhantes, sem ter sido pedido pela tia. Um puta trabalhão por uma fixação boba. Coisa de criança parnasiana.

Não repetisse o fonema,
Não calibrasse o poema,
Sentia-me desengonçada
Tal qual uma ema.

(e qualquer rima boba dava conta do recado)

Atéia, mais por criação que pelo mérito da crítica própria.
Cíclica, consequência do estrógeno.
Paranóica, mais por experiência que por insanidade.
(às vezes mais por insanidade mesmo. Pêlo encravado em ovo? Pode deixar que eu encontro e resolvo!)

O que me atrai? Subamos o Olimpo para responder.
Sátiro/ Sibila. Centauro. Ártemis/ Dioniso. Um deus bufão.
Também Apolo e Afrodite, como bons guardiões das aparências, das artes e dos deleites.
Ímpeto e júbilo. Ares graves e de escárnio. Um pouco do poder de Júpiter, um pouco da insalubridade de Hades. Chiaroscuro. O ácido e o adubo do riso. E a alternancia ininterrupta disso tudo, como a mais pré-socrática das frases: "tudo é Um".

Pessoas: ame-as ou deixe-as.
Num ensopado insosso, vez ou outra aparece um ingrediente nobre, que dá sabor a todo o resto do caldo. Esses ingredientes não me deixam perder o apetite pela humanidade. Então sigo caçando raridades e minúcias nas veredas das pessoas que encontro.

Desejos, paixões? Florbela já bem disse. O amor de um homem, terra tão pisada... Um homem? Quando eu sonho o amor de um Deus! Tá, Cazuza, quem não sabe amar espera pessoas do tamanho de seu sonho, como insetos em volta da lâmpada. Um dia aprendo, então. Por hora, não é uma aula inadiável.
Porque sempre desejo o inconciliável, extremos que não encontro nem em mim, então não posso cobrá-los nos outros. Enquanto esse Deus unificado não vem, contento-me com um politeísmo não tão onipotente. Uma ou outra deidade que rendesse algum culto; muitos santos dos pés de barro, que valeram o tempo de duração de suas imagens - mas valeram!

O que espero do mundo? Dele, não mais do que já me deu como amostra. De mim, 5 (ou 6?) sentidos cada vez mais aguçados e ativos. E uma medicina evoluída e acessível, que me dê a licença de viver um século e em bom estado.
Essa água, ainda que salobra, há de servir muito ainda à minha sede.

Até agora mais consumi que dei ao mundo o que ele merecia. Peço-lhe um pouco mais de paciência: não consigo retribuir sem a certeza de que ele me fez prenhe, de que estou prestes a parir um filho de quem ele goste.
De que vale um simples casulo perto do vôo leve da borboleta? Pois bem, dê um pouco mais de tempo a esse casulo. Não posso garantir uma borboleta-monarca. Não sei se dele surgirá uma mariposa cinzenta ou mesmo uma mosca (caso mosca surgisse de casulo). Mas se eu me sair uma varejeira nojenta, Mundo, dedetize-me sem culpa!



Tá. Dou por findo esse jogo de revela-esconde.
Moral da brincadeira: autodefinições desinteressadas na net podem ter mais valor que anos depositados na conta gorda de algum analista.

As máscaras, essas não desgrudam nunca. São usadas no palco, nas coxias, nos camarins... Talvez sejam nosso chão e pedestal - apoio inevitável.
Fico, portanto, aqui: despida mas coberta por elas.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

São Valentim da terceira idade


"Desci do prédio e vi ele encostado ao ponto de ônibus. Pensei que tinha tido o azar de marcar encontro com um pé-rapado. O homem era um pão, mas pão-duro eu não queria não."

Longe de encontrar esse depoimento em revista para adolescentes, tamanha sinceridade veio da lábia experiente de dona Maria. Maria cheia de graça e libido. Do sertão cearense, trouxe consigo ainda moça o sotaque e o calor, dos quais não arredou pé nem no clima ameno do Sul. "Lá os homens são mais chegadinhos, visse?" Hoje vive de pensão rala e aposentadoria míngua, mas há 40 anos era primeira-dama de Terra Rica, cidadezinha no cafundó paranaense, fronteiriça ao cafundó paulista. Neuto Galdino, o falecido marido e ex-prefeito, caíra nas graças daquela mulher a quem chamava de rainha. Bonita, Maria tinha a personalidade própria a uma majestade do cangaço.

Além das visitas desencarnadas de Neutinho "ao menos um sábado por mês", o que mantém o sorriso resistente aos mais de 79 anos são os bailes dominicais, com o perdão do Senhor pela atividade em dia de descanso. Desde que se estabelecera em Maringá, há 10 anos, sua chegada no Clube do Vovô é aguardada ansiosamente pelos melhores pés-de-valsa da sua faixa etária. A preferência? Um rala-coxa bem coladinho, tendo o parceiro namorada ou não. O compasso e uma boa pança fazem parte dos pré-requisitos na escolha do parceiro de dança. Ela explica que a barriga a poupa do inconveniente da animação excessiva do companheiro, estimulada pelo balanço do soltinho. “É bom porque não encosta .”

Mas quem Maria realmente queria ver com esse vigor todo tomava remédio para tratar da depressão e da insônia. Agenor, 67 anos e pinta de cinqüentão, além de não sorrir também não dançava. Mesmo assim, ela escolhera-o como pretendente. No dia do encontro soube que não era o pé-rapado que julgara: tinha carro e aposentadoria confortável. O gol 2003 foi estreado dez minutos após a apresentação e os três beijinhos. Ela respondeu ao convite para dar umas voltas com um sorrisinho escorregadio, quase sem vontade. Por dentro, porém, lhe queimava o ardor de um Nordeste guardado desde a morte de Neuto.

Entrou no carro; pararam numa rua escura. A passagem de duas moças ao lado de onde Agenor estacionara deixou-a acanhada, fazendo-a desviar da primeira tentativa de beijo. “Elas ficarão é com inveja, Maria.” Os olhos abrilhantaram-se com a promessa, que foi devidamente cumprida num beijo cinematográfico.

As janelas já gotejavam o suor daqueles corpos. No frescor da noite contrastando com a temperatura de dentro do carro, encerra-se o primeiro carinho, que parecia interminável. Maria riu da limpeza que Agenor fez com o polegar no canto da boca. Começaram, aos risos, o round II, dessa vez dando espaço a mãos sem destino definido. Ela esquentou ao sul de seu Equador, enquanto Agenor não moveu um milímetro do “músculo”. Tamanha inércia foi notada pela malícia de mulher observadora: “Ai pai, homem bom que nem esse não funciona bem da carne?”

Não foi difícil descobrir que este era o motivo da depressão do homem. Junto à descoberta veio o telefonema, no dia seguinte, avisando-a da despedida. “Você não me quer então, Agenor?” Querer ele até queria. Mas não conseguiria, nem com ela nem com mulher nenhuma. Do sexo só colhia a secura de uma caatinga desabitada. “Você está certo, eu preciso de varão inteiro. Mas pensa, homem! Neuto tinha isso também. Foi no médico, sarou. Tem remédio, visse? Se quiser te espero.” Não se viram mais.

Mas hoje é 12 de junho, quando São Valentim desculpa aos brasileiros pelo atraso de quatro meses em comemorar sua data. O inverno rigoroso no comércio precisa das graças desse tal de Valentim. Que a seqüência do calendário seja dia de Santo Antônio, o casamenteiro, é por pura coincidência: enlace matrimonial já é folclore do século passado. Hoje padre dá lugar a advogado, jura dá lugar a contrato e as bodas dão bode só de pensar em tanto tempo ao lado de uma mesma pessoa. Até dona Maria pensava assim: namoro, só se cada um vivesse em sua respectiva casa. Mas mesmo em tempos pós-modernos há espaço para umas pitadas de romance. Sendo 12 de junho a data de hoje, não é bom terminar a história em desilusão, mesmo porque não seria conforme a veracidade dos fatos.

Um segundo telefonema, uma semana depois, acaloraria Maria mais que os três cobertores que a protegiam do dia mais frio do ano. “Funcionou, minha rainha! No outro dia fui ao médico, e com uns dois dias de remédio e a sua lembrança durante a insônia eu ressuscitei!” Às cinco horas da tarde, tanto ela quanto ele começaram o ritual: um banho escaldante para sumir com as impurezas cotidianas – as de corpo e de alma. Ela, perfumes e maquiagem discreta; ele, asseamento e barba feita. Mais que São Valentim, celebrariam naquele dia uma Páscoa pagã. Santa seria, para eles, a ressurreição do divino desejo.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Desejo e lágrima em Flor

Florbela Espanca,
bacante doce-fera.
Entre medíocres, alma ímpar
condenada pela morada montanhesa
-única a fazer jus aos seus desejos altivos-
ao ar austero da solidão.

Abiciosa

Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
o vôo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!...

Charneca em Flor, 1930.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Personalidade urbana - Mgá

O problema dessa cidade é que lugar nenhum onde se vá nela - bar, cinema, praça, rua, prédio...- completa-se por si só. Sempre fica aquela impressão de "para onde vamos agora?", "que faremos depois?"
É assim talvez pq falta personalidade aos ambientes. Quando as têm, são fracas ou falsas demais, não se sustentam por muito tempo. São identidades difusas, diluídas, homogêneas, tipicamente contrárias às diferenças - e por esse último motivo não conseguem se definir. Há exceções, mas às margens.

Uma questão para arquitetos, sociólogos, psicólogos, artistas e transeuntes. Ou apenas uma implicação de uma moradora crica e fora do lugar, que está querendo muito dessa debutante vaidosa que é Mgá? Exigências precoces feitas a uma donzela de apenas 61 anos, ainda em puberdade?



quarta-feira, 4 de junho de 2008

Pedro, o pedreiro cult

Meu! Um pedreiro do prédio ao lado está cantando R.E.M., com um sotaque incrivelmente perfeito!!!
Já tinha ouvido samba de raiz, Chico Buarque... e essa agora.

Para dizerem milho dizem milho
Para melhor dizem melhor
Para pior pior
Para telha dizem telha
Para telhado dizem telhado
E vão fazendo telhados.

Santo reluzente

Do avô, o epitáfio:

"Santo Diamante
* 02/11/1938
+ 30/11/2005

Da vida, fez um eterno lapidar-se.
Legou brilho aos seus. Que se façam polidos."

terça-feira, 3 de junho de 2008

O sorveteiro - Parte XII

(...)
Tudo havia acontecido muito simultaneamente, como se ele fosse predestinado a grande posto e não sabia. Político, ele? Talvez tivesse o dom da palavra e da consquista através delas... mas disso a decidir o futuro das pessoas? "Sinais, homem! Isso tudo que aconteceu foram sinais! Não foram?" Levou a divagação até a última gota no banco do parque e tomou rumo em direção à Catedral, trazendo essa dúvida na algibeira.

Não era dado à religiosidade. Se rezava, era para espantar a solidão quando ela estava dolorida demais, caso não encontrasse analgésico em companhia humana. Temia pelas meninas, pedia pela segurança delas, mas quem tomava a palavra na prece era mais o desejo que a crença. "Quem faz o mal nesse chão são os homens. Não cabe a Ele decidir pelo mau uso que fazemos do livre-arbítrio."

Mas agora era hora de papo sério. Queria Ele alguma coisa com Silva? Atribuíra-lhe alguma missão? Para saber mais sobre isso, o homem foi ter na casa Dele. Por que pediria algo em que ele não fosse versado, como se fizesse encomenda de vestido de festa à costureira que não sabe dar ponto nem nó?

Chegou na Catedral. "Não quero, Pai!" - o medo falou mais alto ao aproximar-se do altar. Não queria entrar no mundo da política, como quando não quis entrar no mundo carnal oferecido por Margot. As mãos que o seguravam naquele dia tinham o mesmo vigor de quando o seguraram na juventude. Nem uma ruga a mais. Traziam as unhas pintadas de negro, dando a entender que não era para a vida que trabalhavam. Justo quando Silva estava para realizar algo que o faria crescer, essas mãos vinham sedentas tricotar nós no seu estômago e nas suas decisões.

-Não quero, Pai. O que eu faço?

Como resposta, um vento gelado vindo da cúpula da igreja. Tão gelado quanto a bronca de seu Jorge em tempos de puberdade:

-Homem nasceu pra isso, com você não vai ser diferente. Se te trouxe aqui, foi pra não sair correndo.

A mesma sentença ecoou dentro do sorveteiro, trinta anos depois de inaugurada.
Dessa vez, ele não poderia fugir.

(...)

domingo, 1 de junho de 2008

O sorveteiro - parte XI

(...)

Quando algo lhe vem à cabeça.

Pomba nenhuma segura suas sobras digestivas, para não ter sobrepeso e dessa forma poder voar. Por isso uma delas lança, sem cerimônias, seus restos sobre os cabelos parcos do sorveteiro, que já divagava há um tempo sentado no banco do parque. Ele limpa a desfeita do animal com a mão, mas não se irrita. Outra coisa já estava em sua mente, ocupando-o com preocupações maiores. Maiores que tudo o que pensara até então.

Talvez fosse uma titica de idéia mesmo, como a ave o avisara. Estava destreinado demais no maquinejar do futuro. Mas devia fazer a vida começar a engrenar logo. Devia fazer valer a frase do pai, frase cujo sentido não levava a fundo desde o dia em que se deu por satisfeito ao lado do Kiko. “É hoje, Silva, o dia da reviravolta? Dia em que grandeza fará parte do meu vocabulário de pessoa sem estudos?” – pensava consigo.

E o homem, pela primeira vez, pensou em si mesmo como alguém notório. Digno de terno e gravata, de secretários, assessores e motoristas. A sorte lhe dera todos os sinais: tirou-lhe a negrinha do caminho, tirou-lhe o doutor do caminho, tirou-lhe, inclusive, o velho caminho de vendedor de picolés, que não o levava a mais lugar nenhum. Assim sem rumo, frente ao nada, deveria refazer seu destino. Numa cena bíblica, nuvens abriram-se para iluminar, com um único feixe de luz, “a” cadeira, o assento na câmara que mais nada impedia que fosse dele. Nada impedia!...

Não era só ele quem dizia que a cidade estava precisando de um alguém do povo no governo. Entre os mais simples isso era e sempre foi consenso. Mas a novidade era ouvir isso dos abastados. Queriam diminuir o descontentamento daqueles fazendo-os se sentirem representados, como se houvesse uma democracia ideal. Na prática, sabiam que seria um só voto contra os seus, que uma pessoa sozinha em nada palpitaria. Obviamente, o discurso não era esse. Em comício, ouvia-se:

- A cidade caminha em direção a uma menor discrepância social. Que as classes se unam na construção de um futuro melhor para as gerações vindouras!

- Bonito isso, né? – disse o porteiro ao sorveteiro, mesmo sem entender lhufas do discurso ouvido, um pouco antes da dupla sertaneja aquecer o coração do último e a dança com a morena ao lado do primeiro.

(...)

O sorveteiro - parte X

(...)

Silva lembrou-se de Oswaldo. Melhor, daquele que seria o Excelentíssimo Sr. Vereador Oswaldo. Pensou na loucura que foi ter abandonado a carreira política promissora por uma paixão abrasante e incerta – fato que seria louvado pelo sorveteiro, não fosse a rasteira que levara de do Carmo. Mas a eleição já estava perdida para aquele homem desmoralizado. Junto ao status, o doutor perdera também o carisma. Carisma que Silva tinha de sobra.

Das dez bundas que ocupavam os assentos reservados aos vereadores na cidade, nove eram previsíveis. Reeleições infindáveis ou indicações daqueles que já passaram da validade na câmara mantinham sempre as mesmas nádegas ali, quadradas de tanto chá de cadeira. Mas sempre sobrava uma última, sem nome próprio, que era entregue a uma revelação qualquer. Um fato marcante que ocorresse a um desconhecido era motivo de deslanche no mundo da política. Tinha gente que tentava expor-se em reality shows só para conseguir aquela função.

Naquele ano, o sorveteiro tinha certeza de que a cadeira incógnita seria o novo assento do amigo doutor, depois da vitória no caso da loura e do juiz. Pena: a derrota posterior e a briga no fórum renderam-lhe fotos indignas na imprensa. Silva tentou visualizar os outros doutores que o cumprimentavam na escadaria e só lembrou da frieza daqueles. “Pessoas assim se esquecem do povo logo que os santinhos são limpos nas ruas, no dia seguinte à votação.” Quisesse político que lembrasse dele, das primas, do porteiro e dos meninos descalços - com quem implorava para que deixassem as “pedras” -, teria que votar em alguém vindo do povo também. Mas esse candidato não existia.

(...)