"Desci do prédio e vi ele encostado ao ponto de ônibus. Pensei que tinha tido o azar de marcar encontro com um pé-rapado. O homem era um pão, mas pão-duro eu não queria não."
Longe de encontrar esse depoimento em revista para adolescentes, tamanha sinceridade veio da lábia experiente de dona Maria. Maria cheia de graça e libido. Do sertão cearense, trouxe consigo ainda moça o sotaque e o calor, dos quais não arredou pé nem no clima ameno do Sul. "Lá os homens são mais chegadinhos, visse?" Hoje vive de pensão rala e aposentadoria míngua, mas há 40 anos era primeira-dama de Terra Rica, cidadezinha no cafundó paranaense, fronteiriça ao cafundó paulista. Neuto Galdino, o falecido marido e ex-prefeito, caíra nas graças daquela mulher a quem chamava de rainha. Bonita, Maria tinha a personalidade própria a uma majestade do cangaço.
Além das visitas desencarnadas de Neutinho "ao menos um sábado por mês", o que mantém o sorriso resistente aos mais de 79 anos são os bailes dominicais, com o perdão do Senhor pela atividade em dia de descanso. Desde que se estabelecera em Maringá, há 10 anos, sua chegada no Clube do Vovô é aguardada ansiosamente pelos melhores pés-de-valsa da sua faixa etária. A preferência? Um rala-coxa bem coladinho, tendo o parceiro namorada ou não. O compasso e uma boa pança fazem parte dos pré-requisitos na escolha do parceiro de dança. Ela explica que a barriga a poupa do inconveniente da animação excessiva do companheiro, estimulada pelo balanço do soltinho. “É bom porque não encosta lá.”
Mas quem Maria realmente queria ver com esse vigor todo tomava remédio para tratar da depressão e da insônia. Agenor, 67 anos e pinta de cinqüentão, além de não sorrir também não dançava. Mesmo assim, ela escolhera-o como pretendente. No dia do encontro soube que não era o pé-rapado que julgara: tinha carro e aposentadoria confortável. O gol 2003 foi estreado dez minutos após a apresentação e os três beijinhos. Ela respondeu ao convite para dar umas voltas com um sorrisinho escorregadio, quase sem vontade. Por dentro, porém, lhe queimava o ardor de um Nordeste guardado desde a morte de Neuto.
Entrou no carro; pararam numa rua escura. A passagem de duas moças ao lado de onde Agenor estacionara deixou-a acanhada, fazendo-a desviar da primeira tentativa de beijo. “Elas ficarão é com inveja, Maria.” Os olhos abrilhantaram-se com a promessa, que foi devidamente cumprida num beijo cinematográfico.
As janelas já gotejavam o suor daqueles corpos. No frescor da noite contrastando com a temperatura de dentro do carro, encerra-se o primeiro carinho, que parecia interminável. Maria riu da limpeza que Agenor fez com o polegar no canto da boca. Começaram, aos risos, o round II, dessa vez dando espaço a mãos sem destino definido. Ela esquentou ao sul de seu Equador, enquanto Agenor não moveu um milímetro do “músculo”. Tamanha inércia foi notada pela malícia de mulher observadora: “Ai pai, homem bom que nem esse não funciona bem da carne?”
Não foi difícil descobrir que este era o motivo da depressão do homem. Junto à descoberta veio o telefonema, no dia seguinte, avisando-a da despedida. “Você não me quer então, Agenor?” Querer ele até queria. Mas não conseguiria, nem com ela nem com mulher nenhuma. Do sexo só colhia a secura de uma caatinga desabitada. “Você está certo, eu preciso de varão inteiro. Mas pensa, homem! Neuto tinha isso também. Foi no médico, sarou. Tem remédio, visse? Se quiser te espero.” Não se viram mais.
Mas hoje é 12 de junho, quando São Valentim desculpa aos brasileiros pelo atraso de quatro meses em comemorar sua data. O inverno rigoroso no comércio precisa das graças desse tal de Valentim. Que a seqüência do calendário seja dia de Santo Antônio, o casamenteiro, é por pura coincidência: enlace matrimonial já é folclore do século passado. Hoje padre dá lugar a advogado, jura dá lugar a contrato e as bodas dão bode só de pensar em tanto tempo ao lado de uma mesma pessoa. Até dona Maria pensava assim: namoro, só se cada um vivesse em sua respectiva casa. Mas mesmo em tempos pós-modernos há espaço para umas pitadas de romance. Sendo 12 de junho a data de hoje, não é bom terminar a história em desilusão, mesmo porque não seria conforme a veracidade dos fatos.
Um segundo telefonema, uma semana depois, acaloraria Maria mais que os três cobertores que a protegiam do dia mais frio do ano. “Funcionou, minha rainha! No outro dia fui ao médico, e com uns dois dias de remédio e a sua lembrança durante a insônia eu ressuscitei!” Às cinco horas da tarde, tanto ela quanto ele começaram o ritual: um banho escaldante para sumir com as impurezas cotidianas – as de corpo e de alma. Ela, perfumes e maquiagem discreta; ele, asseamento e barba feita. Mais que São Valentim, celebrariam naquele dia uma Páscoa pagã. Santa seria, para eles, a ressurreição do divino desejo.
5 comentários:
rs... boa, na medida o texto
Qual o nome do remédio?
ahuahaauahauahauaha
tá precisando?
caramba! delicado, sutil e belo!
belíssimo! belíssimo! belíssimo!
adorei a suavidade das linhas!
fiquei comovida...
A personagem ajudou bastante. A dona Maria é vivíssima - e hilária.
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