domingo, 1 de junho de 2008

O sorveteiro - parte XI

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Quando algo lhe vem à cabeça.

Pomba nenhuma segura suas sobras digestivas, para não ter sobrepeso e dessa forma poder voar. Por isso uma delas lança, sem cerimônias, seus restos sobre os cabelos parcos do sorveteiro, que já divagava há um tempo sentado no banco do parque. Ele limpa a desfeita do animal com a mão, mas não se irrita. Outra coisa já estava em sua mente, ocupando-o com preocupações maiores. Maiores que tudo o que pensara até então.

Talvez fosse uma titica de idéia mesmo, como a ave o avisara. Estava destreinado demais no maquinejar do futuro. Mas devia fazer a vida começar a engrenar logo. Devia fazer valer a frase do pai, frase cujo sentido não levava a fundo desde o dia em que se deu por satisfeito ao lado do Kiko. “É hoje, Silva, o dia da reviravolta? Dia em que grandeza fará parte do meu vocabulário de pessoa sem estudos?” – pensava consigo.

E o homem, pela primeira vez, pensou em si mesmo como alguém notório. Digno de terno e gravata, de secretários, assessores e motoristas. A sorte lhe dera todos os sinais: tirou-lhe a negrinha do caminho, tirou-lhe o doutor do caminho, tirou-lhe, inclusive, o velho caminho de vendedor de picolés, que não o levava a mais lugar nenhum. Assim sem rumo, frente ao nada, deveria refazer seu destino. Numa cena bíblica, nuvens abriram-se para iluminar, com um único feixe de luz, “a” cadeira, o assento na câmara que mais nada impedia que fosse dele. Nada impedia!...

Não era só ele quem dizia que a cidade estava precisando de um alguém do povo no governo. Entre os mais simples isso era e sempre foi consenso. Mas a novidade era ouvir isso dos abastados. Queriam diminuir o descontentamento daqueles fazendo-os se sentirem representados, como se houvesse uma democracia ideal. Na prática, sabiam que seria um só voto contra os seus, que uma pessoa sozinha em nada palpitaria. Obviamente, o discurso não era esse. Em comício, ouvia-se:

- A cidade caminha em direção a uma menor discrepância social. Que as classes se unam na construção de um futuro melhor para as gerações vindouras!

- Bonito isso, né? – disse o porteiro ao sorveteiro, mesmo sem entender lhufas do discurso ouvido, um pouco antes da dupla sertaneja aquecer o coração do último e a dança com a morena ao lado do primeiro.

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