terça-feira, 3 de junho de 2008

O sorveteiro - Parte XII

(...)
Tudo havia acontecido muito simultaneamente, como se ele fosse predestinado a grande posto e não sabia. Político, ele? Talvez tivesse o dom da palavra e da consquista através delas... mas disso a decidir o futuro das pessoas? "Sinais, homem! Isso tudo que aconteceu foram sinais! Não foram?" Levou a divagação até a última gota no banco do parque e tomou rumo em direção à Catedral, trazendo essa dúvida na algibeira.

Não era dado à religiosidade. Se rezava, era para espantar a solidão quando ela estava dolorida demais, caso não encontrasse analgésico em companhia humana. Temia pelas meninas, pedia pela segurança delas, mas quem tomava a palavra na prece era mais o desejo que a crença. "Quem faz o mal nesse chão são os homens. Não cabe a Ele decidir pelo mau uso que fazemos do livre-arbítrio."

Mas agora era hora de papo sério. Queria Ele alguma coisa com Silva? Atribuíra-lhe alguma missão? Para saber mais sobre isso, o homem foi ter na casa Dele. Por que pediria algo em que ele não fosse versado, como se fizesse encomenda de vestido de festa à costureira que não sabe dar ponto nem nó?

Chegou na Catedral. "Não quero, Pai!" - o medo falou mais alto ao aproximar-se do altar. Não queria entrar no mundo da política, como quando não quis entrar no mundo carnal oferecido por Margot. As mãos que o seguravam naquele dia tinham o mesmo vigor de quando o seguraram na juventude. Nem uma ruga a mais. Traziam as unhas pintadas de negro, dando a entender que não era para a vida que trabalhavam. Justo quando Silva estava para realizar algo que o faria crescer, essas mãos vinham sedentas tricotar nós no seu estômago e nas suas decisões.

-Não quero, Pai. O que eu faço?

Como resposta, um vento gelado vindo da cúpula da igreja. Tão gelado quanto a bronca de seu Jorge em tempos de puberdade:

-Homem nasceu pra isso, com você não vai ser diferente. Se te trouxe aqui, foi pra não sair correndo.

A mesma sentença ecoou dentro do sorveteiro, trinta anos depois de inaugurada.
Dessa vez, ele não poderia fugir.

(...)

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