quarta-feira, 7 de maio de 2008

Meninos, lesmas e círculos



A lesma, por onde passa, deixa marcas viscosas que denunciam suas andanças.

Tinha uma lesma que um dia olhou pra trás e percebeu que havia feito círculos e mais círculos. Que gastara anos de sua vida apenas fazendo círculos gosmentos. E viu graça no desenho, porque já tinha ouvido falar de um sábio chinês que dizia que não levar-se a sério era sinal de autoconhecimento. Quer gozar mais de si mesmo do que fazer das pernas o próprio destino, esquecendo de levar em conta os roteiros da razão ou do coração? Enquanto ela escorregava na sua gosma, ia se assistindo como a um filme barato. Filme daqueles que a gente não precisa pensar, porque entregam o enredo embaladinho, pronto pra ser servido.

E a lesma olhou aquele muco todo e pensou no tempo que levou para fazer aquilo e no caminho inteiro que percorrera. E sentiu como se estivesse no ponto zero de sua vida. Que cada círculo que fizera tinha seu ponto zero, e que todos eles a levavam a lugar nenhum. Viu que tudo começara no ponto zero zero, quando era uma lesminha e dera sua primeira escorregada, toda sem jeito. Foi quando começou a vida errante e errada.

Uma fila de formigas saúvas passava a seu lado com ar de desprezo. Como eram poderosas aquelas formigas! Em uma noite, conseguiram carregar nas pinças a horta inteira do pai do menino que brincava logo ali. Quanta força, quanta determinação! Mas que dó que deu quando o menino pegou a lupa pra ver formiga morrer queimada pelos raios de sol.

Quanto círculo, quanto círculo! Quanto círculo gosmento, quantos meninos brincando de roda, quantas formigas fazendo trilhas circulares, quantas mães mexendo em círculo a panela do feijão que o menino vai enrolar pra comer! E o pai, que agora devia estar rodando a cidade inteira pra voltar do serviço? Ele tinha que trabalhar pra não deixar a conta naquele zero redondo que estava, motivo das últimas zonzeiras da mãe. Ciclo vicioso.

O chinês estava certo, não havia nada que não fosse motivo de riso. A lesma sentiu que estava tendo uma epifania circular, e riu, riu até estrebuchar. Mas ela estrebuchou foi do sal que o menino jogou nela. O pivete caiu na gargalhada quando viu a lesma ferver, contorcendo-se em espiral. E ela murchou toda e terminou-se num sorriso de boca de lesma.

Um comentário:

Wilson Guerra disse...

Com tem crianças pestes nesse mundo, não?!