sábado, 31 de maio de 2008

O sorveteiro - Parte XIX

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“Que comece a vida, pois!” - foi a frase que o sorveteiro ouviu do pai há trinta anos, ao perceber o filho interessado nos decotes femininos, ainda comportados em comparação aos de do Carmo e das primas. Levou-o, é claro, para falar com Margot, a ruiva gorda que todo mês tinha carne nova em sua casa para rapazotes como Silva.

O filho estranhou a intimidade do pai com a cafetina. Ficou de coração apertado ao pensar que a mãe era enganada em relação às horas-extras feitas no trabalho. Isso explicava o fato de que apenas o serviço fosse extra, nunca o salário. “Melhor trabalhar mais e ganhar pouco do que não trabalhar, Nadir! Reclamar que eu não vou.” E a mãe se calava. Não estavam em condições de pedir nada: a fila dos que se contentariam com menos era ameaçadora demais para encorajar alguma exigência.

Se o pai de todos os outros meninos faziam o mesmo, porque não o seu? Porque era seu pai, oras! Seu Jaime da Silva ensinara a ele todos os princípios que trazia consigo, inclusive o dom de perceber as pessoas mais profundamente do que elas mesmas em relação a si. Era respeitoso com todos e tudo, mesmo em tempos de se perder a cabeça, tal como estava a época em que o sorveteiro era rapazote. Talvez por isso a válvula de escape na casa da luz roxa –Margot não gostava de vermelho, lembrava-se do sangue que pintou parte de seu passado.

Mas e a curiosidade? Ah! Essa não podia ser negada. Disputava com os meninos da rua as frestas da janela daquele que era o primeiro prostíbulo da cidade. Escola para quê? Não entendia porque a professora de português se matava explicando aos meninos da quarta série - cursada duas vezes por Silva, quando desistiu de encará-la pela terceira – as belezas femininas adoradas pelos poetas, se elas estavam logo ali, longe do tato, mas ao sabor da vista.

“Não quero, pai...” No fundo, era o que mais queria na vida. Mas uma mão o segurava por dentro. Se as tocasse, deixaria de idolatrá-las, deixariam de ser santidades. Essa sensação o perseguia desde sempre. Amava sempre de longe, até que a obsessão o tomava e não conseguia guardar para si só tudo o que sentia. Quando revelava o sentimento incontrolável - e caso fosse retribuído - deixava logo de desejar: o objeto perdia a aura.

E isso foi assim até o dia em que Maria Bela mostrou para ele que o desejo, contido em si ou escancarado e retribuído, era motivo de estagnação. A primeira lição que tivera na vida foi durante a infância, quando o pai lhe dera as bases do viver com honra. A segunda foi a prova de fogo do dia em que Maria fugira. Dali para frente estava o ato decisivo: saltar o abismo ou cair nele. Para não escorregar, estufou o peito e repetiu a frase do falecido pai, agora com o sentido vindo de homem de mais de quarenta anos:

- Que comece a vida, pois!

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